sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Da vez primeira em que me assassinaram


Da vez primeira em que me assassinaram




Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...




Depois, de cada vez que me mataram...




Foram levando qualquer coisa minha...






E hoje, dos meus cadáveres, eu sou




O mais desnudo, o que não tem mais nada...




Arde um toco de vela, amarelada...




Como o único bem que me ficou!






Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!




Ah! desta mão, avaramente adunca,




ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!






Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!




Que a luz, trêmula e triste com um ai,




A luz do morto não se apaga nunca!



Mario Quintana

Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha.

Editora Global Editora, 17º edição, São Paulo, 2005, p. 26


sábado, 20 de fevereiro de 2010

ERRADOS RUMOS


A caminhada....

Amassando a terra.

Carreando pedras.

Construindo com as mãos

sangrando

a minha vida.


Deserta a longa estrada.

Mortas as mãos viris

que se estendiam às minhas.

Dentro da mata bruta

leiteando imensos vegetais,

cavalgando o negro corcel da febre,

desmontado para sempre.


Passa a falange dos mortos...

Silêncio! Os namorados dormem.

Os poetas cobriram as liras.

Flutuam véus roxos

no espaço.


Na esquina do tempo morto,

a sombra dos velhos seresteiros.

A flauta. O violão. O bandolim.

Alertas as vigilantes

barroando portas e janelas

cerradas.

Cantava de amor a mocidade.


A estrada está deserta.

Alguma sombra escassa.

Buscando o pássaro perdido

morro acima, serra abaixo.

Ninho vazio de pedras.

Eu avante na busca fatigante

de um mundo impreciso,

todo meu,

feito de sonho incorpóreo

e terra crua.


Bandeiras rotas.

Desfraldadas.

Despedaçadas.

Quebrado o mastro

na luta desigual.


Sozinha...

Nua. Espoliada. Assexuada.

Sempre caminheira.

Morro acima. Serra abaixo.

Carreando pedras.


Longa procura

de uma furna escura

fugitiva me esconder,

escondida no meu mundo.

Longe...longe...

Indefinido longe.

Nem sei onde.


O tardio encontro...

Passado o tempo

de semear o vale

de colher o fruto.

O desencontro.

Da que veio cedo e do que veio tarde.


A candeia está apagada.

E na noite gélida

eu me vesti de cinzas.


Restos, Restolhos.

Renegados os mitos.

Quebrados os ícones.

Desfeitos os altares.

Meus olhos estão cansados.

Meus olhos estão cegos.

Os caminhos estão fechados.


Perdida e só...

No clamor da noite

escuto a maldição das pedras.

Meus errados rumos.

Apagada a lâmpada votiva,

tão inútil.



Cora Coralina.


Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas nasceu na cidade de Goiás, a 20 de agosto de 1889, na "Casa da Ponte". Hoje, sob o nome de Museu Casa de Cora Coralina, recebe turistas de todo o Brasil e do exterior. Morreu em Goiânia, a 10 de abril de 1985.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Mario Quintana


ENVELHECER



Antes, todos os caminhos iam.


Agora todos os caminhos vêm.


A casa é acolhedora, os livros poucos.


E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas




SEMPRE


Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.


Só o que está perdido é nosso para sempre.


Nós só amamos os amigos mortos


E só as amadas mortas amam eternamente.



INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA


A vida é um incêndio: nela


dançamos, salamandras mágicas


Que importa restarem cinzas


se a chama foi bela e alta?


Em meios aos toros que desabam,


cantemos a canção das chamas!



Cantemos a canção da vida,


na própria luz consumida...



Mario Quintana
Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha, global editora, 17º edição, São Paulo, 2005, páginas 115, 101 e 69.


http://www.globaleditora.com.br/


Mario (de Miranda) Quintana nasceu em Alegrete/RS, a 30 de julho de 1906. O poeta faleceu em 1 de maio de 1994. É detentor de vários prêmios literários. Seu primeiro livro de poesia surgiu em 1940, A Rua dos Cataventos.

ESTE QUARTO


ESTE QUARTO


Para Guilhermino Cesar



Este quarto de enfermo, tão deserto


de tudo, pois nem livros eu já leio


e a própria vida eu a deixei no meio


como um romance que ficasse aberto...



que me importa este quarto, em que desperto


como se despertasse em quarto alheio?


Eu olho é o céu! imensamente perto,


o céu que me descansa como um seio.



Pois só o céu é que está perto, sim,


tão perto e tão amigo que parece


um grande olhar azul pousando em mim.



A morte deveria ser assim:


um céu que pouco a pouco anoitesse


e a gente nem soubesse que era o fim...


Mario Quintana

Coleção Melhores Poemas, Seleção Fausto Cunha, global editora, 17º edição, São Paulo, 2005, página 53.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O DIA SEGUINTE AO DO AMOR




O DIA SEGUINTE AO DO AMOR


Quando a luz estender a roupa nos telhados

E for todo o horizonte um frêmito de palmas

E junto ao leite fundo de nossas duas almas

Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,


Seremos, na manhã, duas máscaras calmas

E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...

Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,

Encheremos o céu de vôos encantados!...


E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,

Serão todos felizes, sem saber por quê...

Até os cegos, os entrevadinhos...E


Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,

Nós improvisaremos danças espantosas

Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cataventos!

Mario Quintana.
Fonte:

http://www.globaleditora.com.br/Loader.aspx?ucontrol=bWVudUhvbWUsZmljaGFMaXZybw==&livroID=3581

página 62.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Prefiro Rosas



PREFIRO ROSAS, meu amor, à pátria,


E antes magnólia amo


Que a glória e a virtude.


Logo que a vida me não canse, deixo


Que a vida por mim passe


Logo que eu fique o mesmo.


Que importa àquele a quem já nada importa


Que um perca e outro vença,


Se a aurora raia sempre.


Se cada ano com a primavera


As folhas aparecem


E com o outono cessam?


E o resto, as outras coisas que os humanos


Acrescentam à vida,


Que me aumentam na alma?


Nada, salvo o desejo de indiferença


E a confiança mole


Na hora fugitiva


Fernando Pessoa
Coleção Melhores Poemas - Seleção Tereza Rita Lopes
Global editora.12º edição, São Paulo, 2004, página 137

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sermos


The very fact that we are proves all.


O próprio fato de sermos prova tudo.


Fernando Pessoa, Aforismos e Afins.

Editora Companhia das Letras.